É necessário e urgente uma busca sistematizada para investigar e caracterizar condutas socialmente desviantes e atentatórias da liberdade, dignidade e independência pessoais, da mulher.
Entretanto, uma reflexão sobre á realidade há muito percebida, e evidente de um todo que, por razões culturais e sociais, até agora era comumente aceita como fazendo parte da “normalidade” entre pessoas ligadas pelos laços afetivos ou, mais simplesmente, por laços de intimidade, em namoros, casamentos ou relações de fato. Bastará uma simples pesquisa na memória de nossas avós e até de nossas mães, ou relembrar os conteúdos de alguns filmes ou letras de algumas musicas tradicionais para se perceber quão antiga é esta prática, até há pouco, esmagadoramente, da responsabilidade dos homens.
Há uma geração, ou duas, atrás, a própria definição de um “bom marido”, nas classes mais populares, nem sequer contemplava a ausência desta tendência ou manifestação evidente como uma “qualidade” melhor classificada na hierarquia: primeiro estaria o ser trabalhador e “amigo de trazer para casa”, segundo o de não ser bêbado e de não bater na mulher...
Embora se continue a valorizar mais a agressão física na violência doméstica, pelas razões óbvias das suas conseqüências visíveis (e ultimamente a contribuírem assustadoramente para a dramática estatística dos homicídios qualificados), o “abuso emocional”, excluindo o risco de vida imediato, mesmo sendo causa relativamente freqüente de suicídios, tem, quase sempre, conseqüências trágicas na vida emocional e afetiva das vitimas.
O abuso emocional, tal como qualquer outra ação psicológica que vise a destruição da identidade individual, da dignidade, da auto-estima e da liberdade, cujo exemplo mais comum é a chamada “lavagem cerebral”, pretende alcançar o domínio e o controle sobre a pessoa abusada através do medo; da restrição indireta ou direta da sua liberdade e da imposição de um clima de coação emocional tendente a submergir a vontade individual, a modelar comportamentos e atitudes conformes aos desejos do abusador, a provocar o isolamento familiar, social e afetivo e a criar uma dependência absoluta em relação ao agressor, pela desvalorização do seu “eu” global, das suas idéias, atitudes, sentimentos e comportamentos. As ameaças de violência física, da exposição pública das hipotéticas falhas ou defeitos ou até do abandono tumultuoso da relação, com versões de homicídio ou suicídio, numa evidente chantagem emocional; o terror infundido através de constantes crises de violência verbal ou violência sobre objetos; o desprezo ostensivo perante queixas ou lamentações e a ignorância dos sentimentos; o aviltamento em relação aos saberes ou práticas culturais ou domésticas; o controlo permanente (policiamento) sobre as atividades e, por vezes, as humilhações sexuais acabam por conduzir a vitima a um estado de submissão, marcado permanentemente pela necessidade de não importunar ou provocar explosões de mau humor no agressor, anulando assim progressivamente, a própria existência autônoma.
Por vezes sucede de modo comum com outras situações de elevado stress, violência e dependência, que a vítima acaba por se “identificar” com o agressor, desculpando-o, “compreendendo-o” e defendendo-o de terceiros, racionalizando assim “patologicamente” a situação de “vitimização” que, às vezes, o agressor assume no casal, invertendo paradoxalmente as posições de vítima e carrasco. Nesta fase, sem uma intervenção exterior, o ciclo do abuso emocional tenderá a perpetuar-se sem esperança nem apelo.
As armas utilizadas na destruição da identidade da vítima são, como já foi referido, a violência, em múltiplas formas, claras ou dissimuladas; o sarcasmo, o ridículo, a mentira ou distorção grosseira da verdade; o isolamento familiar, social e afetivo; a discriminação, a depreciação, a humilhação e a indiferença pelos sentimentos e o desprezo pela pessoa; o abuso sexual, o controlo absoluto de todos os passos e a vitimização, com inversão dos papéis. Por vezes, o contexto em que se desenrolam todas estas agressões formata-se como uma relação de senhor(a)/criada(o) ou patrão(patroa)/empregada(o), explorando apenas as utilidades do casal mas sem lhe conceder laços afetivos.
Convém salientar que as conseqüências para o abusado não se extinguem nas seqüelas psicológicas do abuso: frequentemente as conseqüências estendem-se às perturbações psicossomáticas, às cefaléias, à depressão e às doenças infecciosas “oportunistas”, típicas de sistemas imunitários enfraquecidos, no caso, por sujeição a stress constante e, eventualmente, má nutrição e sono de má qualidade.
A questão premente que se coloca, entretanto, é a de saber porque é que o abuso emocional acontece.
Independentemente de causas psicológicas subjacentes, que têm, sempre, um peso importante, parece um dado adquirido que os fundamentos culturais, sociais, ideológicos e religiosos terão um papel preponderante nos comportamentos de abuso emocional. Seja por “respeitar” uma tradição, como a da subalternização moderada da mulher na herança judaico-cristã, ou radical, no islamismo; seja por uma visão conservadora e reacionária do homem sobre a mulher, também herdada da prática ancestral (estatisticamente é mais relevante o abuso por parte do homem); ou ainda porque o exercício do poder econômico, sem suportes éticos e morais facilmente extravasa para o exercício do poder pessoal arbitrário, estes fatores facilitam ou agem diretamente como desencadeantes do abuso.
Na atualidade, a manutenção e o agravamento destes comportamentos, em oposição a uma maior abertura sentida em relação à igualdade dos direitos do gênero e à defesa da individualidade radicam-se na impunidade social de que gozam (a abrangência das leis sobre a violência doméstica ainda não contempla o abuso emocional), e no espírito que governa a administração formal, ou informal, da justiça, tendenciosamente contrário às leis do condicionamento operante, que, como se sabe, influenciam de forma capital os nossos comportamentos, ao mantê-los e ao aumentar a sua freqüência se existirem reforços nas suas conseqüências (no caso, pelo prazer de dominar), ou a extingui-los ou debilitá-los se os resultados forem negativos (punição ou ausência de reforço).
Evidentemente que um comportamento que contempla um maquiavelismo comportamental terá que ter, nas variáveis psicológicas, também um determinante essencial.
O combate da agressão emocional á mulher, tenha este a composição que tiver e independentemente do sentido do gênero em que ocorra tem diversas frentes. Uma delas é, claramente, a intervenção legal.
A legislação tem que ser adequada a este tipo de agressões e a forma do seu reconhecimento divulgada amplamente em campanhas de informação. Para que a intervenção legal ocorra é, evidentemente, decisivo o conhecimento dos fatos, o que sugere uma grande necessidade de que este tipo de agressão seja bem tipificado e considerado “crime público”, o que aumenta as probabilidades da sua denúncia e tratamento jurídico..
Mas, é na prevenção que, nesta área, tal como em quase todas as outras situações de abuso deve incidir o maior esforço social, através de campanhas, oficiais ou oficiosas que, com maior ou menor complexidade filosófica ou prática transmitam, de forma impressiva que, na verdade, a origem deste e de muitos outros problemas de relacionamento social e afetivo reside no fato de não entendermos que, entre nós, somos todos iguais e de que, por essa razão, todos pertencemos uns aos outros.
As marcas são os hematomas; ou braços e narizes quebrados. São marcas na alma, um sentimento de medo da vida, de uma eterna prisão, um total convencimento de seu próprio sentimento eterno de desvalia.
As coisas começam de forma inocente. O ciúme durante o namoro, que até nos deixa orgulhosas, porque achamos que ele está cuidando de nosso bem estar. E se preocupando com o nosso bem estar. Algumas de nós percebemos o exato momento em que o príncipe vira sapo. E muitas de nós conseguem correr do sapo, mas outras entre nós sentimos mal, mas não conseguimos enxergar que somos vitimas de um abusador emocional, que estamos presas em uma teia de abusos emocionais, que vai destruir todos os nossos sonhos de uma família, vai destruir nossos filhos e até nossa capacidade de ação e reação.
Para nós fica sempre o sentimento de que nunca conseguimos atender a exigência do nosso companheiro. E quando achamos que conseguimos, já existem tantas demandas impossíveis de ser viabilizadas, e uma lista infinita de defeitos e erros nossos que só nos resta tentar não fazer mais uma vez a coisa errada, o que inevitavelmente faremos. É uma tensão constante um pisar em ovos, um viver dentro de uma panela de pressão, temos que ficar escolhendo as palavras e nem isso muitas vezes ajuda muito.
Incidentes insignificantes tornam se motivos de berros, de criticas demolidoras, de xingamentos que nos lembre o quanto insignificantes e inúteis nós somos. Sentimos que somos pouco desejáveis, temos medo até da educação que damos aos nossos filhos. Porque muitas vezes somos humilhadas diante deles.
Uma das “estratégias” usadas é a negação total de contato físico, verbal, e sexual. As formas de abuso emocional podem variar em algumas nuances de acordo com a cultura e classe social do abusador, mas em síntese é tudo a mesma coisa, destrói a nossa auto-estima, destrói a nossa vida.
Mas quem é o abusador emocional? Quem é esse monstro que mora em nossa casa, que dorme ao nosso lado. Quem é esse monstro de duas faces, que na sociedade aparenta ser um bom pai, cheio de virtudes, um homem correto, e na intimidade do lar é esse monstro? Porque essa perversidade com os que lhes são tão íntimos? Os que talvez o ame?
Esse é um homem inseguro, que talvez tenha sofrido violência em sua infância, dentro da sua família ou na sociedade. Inseguros do seu desempenho sexual, que através da humilhação a suas companheiras, eles acham que vão afastar a criança assustada e impotente que existe dentro deles.
A masculinidade é definida muito em função de do domínio e controle sobre os outros. Alivia o estresse e proporciona uma sensação boa, ao abusador. Não importa a um monstro desses que nós nos sintamos culpadas, e inadequadas depois de sofrermos tal abuso.
O abusador tem dificuldades em lidar com o conflito (frustração, medo, perda) Prefere expressar suas frustrações através da raiva. Costuma apresentar uma enorme dependência da vitima, auto-piedade, e não se sente culpado de suas ações. Ao contrario vê a se mesmo como uma vitima, acha que são as outras pessoas que o provocam para agir como age.
Considera-se superior as mulheres. Por ser inseguro tem uma grande necessidade de exercer controle sobre o ambiente e as pessoas que convive, por isso sempre são sedutores de caráter. Percebem que a violência efetivamente funciona, e por isso a mantém.
Impulsivo e com pré disposição para comportamentos compulsivos. Projeta na mulher sentimentos de hostilidade em relação á figura feminina, como uma forma de compensação por sua impotência.
E por que não vamos embora?
São vários os motivos:
Trata-se deu um ciclo, de uma dança mórbida, jogos inconscientes que se compensam. Dificilmente conseguimos sair sozinhas desse jogo doentio. Quando rompemos sem estarmos conscientes, do jogo, tendemos a recolocar alguém no lugar.
Para rompermos com um circulo de abusos, emocionais ou físicos, precisamos de uma rede de apoio poderosa. Porque os abusos surtem efeitos e nos mutilam a capacidade de ação.
Nossos filhos são armas poderosas, assim como sanções financeiras, perda do padrão econômico, medo da censura social e familiar, por romper com alguém que é um “bom marido”, aos olhos de todos. A co-dependencia se confunde com afeto.
E por isso precisamos de uma rede poderosa para rompermos com os abusos. Precisamos de apoio jurídico, psicológico, de uma infra-estrutura que nos garanta a nossa integridade física e moral. E a dos nossos filhos. Precisamos de coragem, e de uma estratégia de ação. Mas antes de tudo precisamos entender que não somos culpadas – que não “fizemos por merecer” como parece crer o nosso companheiro. Precisamos acreditar em outras formas de existir mais saudáveis, e voltarmos a sonhar e a acreditar-me um futuro sem violência, sem coação. Precisamos ouvir nossa própria voz.