Quarta-feira, 05.05.10
Ainda me lembro de quando estava grávida de você, lembro-me de que foi uma época especialmente difícil para mim. Foi a confrontação da realidade que minhas escolhas foram totalmente erradas, baseadas em desespero, em erros que me levaram a outros erros... Quando fiquei grávida de você, não pude mais deixar de enxergar que o pai que eu escolhi para vocês, que o homem que eu escolhi para viver ao meu lado, era na realidade um monstro. Uma pessoa sem a menor sensibilidade ou empatia pelos problemas do outro, mesmo que esse outro fosse eu, sua irmã ou você. Alias para ser realista, não mesmo que se fosse, é principalmente se fossemos nós. Um homem capaz de caluniar, de fazer com que minha vida se tornasse um verdadeiro inferno, pelo simples fato de que isso lhe dava prazer, ainda não sei o que dói mais, se o fato de ter sofrido tanta violência durante minhas gravidez, ou se o fato de ter descoberto que elas foram muito bem planejadas..., talvez isso tenha começado a influenciar você, ficávamos sozinhos sua irmã, eu com você dentro de mim, o dia todo, tendo como comida arroz e tomate, outras vezes ovos e arroz, o pão era comprado nas promoções e vinha de cinquenta ou até mais e ai tínhamos que come-lo ao longo do tempo do jeito que tivesse....mas não era por falta de dinheiro, dinheiro esse monstro sempre teve muito, era por pura crueldade...meu Deus como demorei para descobrir isso, como eu me achava poderosa a ponto de acreditar que eu tinha o poder de mudar uma mente tão demoníaca... Lembro do dia que você foi nascer eu e sua irmã, fomos ao ginecologista, porque já fazia dias que eu não estava me sentindo muito bem. Ela disse que você já estava passando da hora de nascer, que teríamos que fazer o parto o mais rápido possível, quando sai da clínica e fui descendo a rua, sua irmã disse que já estava cansada... Ela tinha apenas quatro aninhos, eu a peguei no colo, nesse momento seu pai passou de carro, parou perguntou por que tínhamos saído de casa, eu disse, disse que tinha que ir urgente para o hospital, você já estava querendo vir ao mundo a muito, ele simplesmente me disse então vai pra casa com a menina, que mais tarde eu vou lá te pegar... Meu Deus, quanta falta de consideração, quanta falta de humanidade... Muito tempo depois eu fui saber que naquele momento estava indo temperar uma carne para um churrasquinho com os amigos de pescaria... Lembro-me que quando você tinha vinte dias tive que te deixar com uma empregada e sair para buscar trabalho, porque não aguentava mais aquela vida de miséria, de calunia de difamação, de descaso... Sabe “Vi” uma cena que não me sai da cabeça é quando você fez um aninho, eu consegui comprar um velotrol para você, fiquei tão feliz, e você quando recebeu o presente, lembro até agora da sua felicidade montado naquele velotrol azul, que comprei com o meu salário, seu pai estava em uma pescaria como sempre, quando chegou nervoso, ele estava “nervoso” com a gente, ele chutou o velotrol até quebrar o guidon, lembro da tristeza estampada em seu rostinho, da dor que você deve ter visto espada em meu rosto... Uma semana depois ele arrumou um pedaço de pau e arrumou o guidon, mas eu sempre que olhava para o velotrol me lembrava dos coices, e acredito que você também. Você aprendeu muito cedo meu filho a violência, a mais extrema e cruel forma de violência, a que é cometida com os seus, a violência silenciosa que não podia sair de dentro de nossa casa, a violência que tinha que ser fingida, escondida, engolida... Talvez por isso você roía sua unhas, assim como eu comia muito para esconder dentro do excesso de gordura o medo, a humilhação, a dor, você roía suas unhinhas para não externar a barbaridade que estávamos todos nós vivendo, experimentando...foram anos terríveis aqueles, alias você meu filho teve uma vida difícil muito difícil, tenho que admitir isso, fico me perguntando porque só agora tenho consciência de tudo isso? POSTADO POR UMA MULHER


publicado por araretamaumamulher às 15:06 | link do post | comentar | favorito

Terça-feira, 04.05.10
Ser mãe é padecer no paraíso, quanta alegria e celebração à mulher que pode dizer isso – ela é mãe de filho vivo. Mãe de filho morto é mulher que desce ao inferno da dor, do desespero e da depressão. Sua vida, de céu não tem nada, há apenas um quedar-se insone, ansioso e impotente diante de um destino que não pode mudar. Se mães pudessem pressentir a morte inesperada de filhos, em crimes e acidentes, ou salvá-los de morte anunciada por enfermidade que vai se estendendo, simbolicamente tentariam aquilo que é fisiologicamente impossível: pelo mesmo e agora já inexistente cordão umbilical, através do qual os colocaram no mundo, os trariam de volta ao aconchego do útero. Sim, é nele, útero, que a constante dor emocional da morte, quase sempre psicossomatizada, lateja fisicamente. Sinto dores intensas em meu útero até hoje – útero que já foi preenchido pelo feto, feto que virou filho, filho que virou sepultura. A dor não passa jamais. Emocional e fisicamente, é como se ela fosse mudando de lugar e me machucando em espaços diversos. O falecimento de um filho é dor que dói na alma e no corpo. Não há superação, mas tão somente adequação de seu dia a dia ao sofrimento. Às vezes, quero acreditar que o meu filho não morreu. Há uma razão para isso, pendulando entre a filosofia e a biologia, essas duas áreas do conhecimento que são também elas, mães – preciosas mães do entendimento da condição humana: existem na vida dois fenômenos irreversíveis, ou seja, a maternidade e a morte. A mulher é uma mulher e quando dá à luz passa a ser uma mulher-mãe. Se seu filho morre, ainda assim ela continua sendo mãe. “Não existe ex-mãe”. A DIFICULDADE DE OLHAR NO ESPELHO Acredito que para toda mães que passa por uma experiência dessa a vida muda naquilo que é mais perceptível, ou seja, na rotina, na saúde, no ânimo e nos projetos. Mas muda também, e em doses alucinantes de padecimento, naquilo que é inconsútil, mas se torna marcado para sempre: a alma. “Onde está o meu Vi para eu abraçar, cuidar, beijar”? É como amputar um braço, não se recupera mais. É uma dor que é um buraco que nada preenche. Falou-se em alma da mulher-mãe, falou-se no desejo impotente de amparar o que já é inerte e assim faz-se necessário voltar aqui à teoria do luto. O que é essa alma? Como se dá o processamento da irreversível perda? O projeto de maternidade, bem como a maternidade consumada, é para a mulher uma espécie de “prolongamento de seu ego”, assim ensinou a humanidade o criador da psicanálise, Sigmund Freud, e dois de seus mais geniais seguidores – embora tenham rompido com o mestre no andar da carruagem do conhecimento humano – Melanie Klein e Jacques Lacan. Pode-se dizer, mesmo, que “é um ato narcisista da mulher e na criança ela vai projetar a si própria, o que não quer dizer que não a ame profundamente e para sempre”. Assim, quando o filho morre, três dores se sobrepõem. Em primeiro lugar, o “espelho-lago da mitologia de Narciso”, presente em todos nós, se parte e muitas mães órfãs mal conseguem olhar-se de fato num espelho de verdade. Eu não conseguia no início olhar no espelho, o meu olhar sangrava a minha alma. Fiquei oca. Em segundo lugar, a morte do meu filho interrompeu toda a perspectiva de futuro que depositei nele, inclusive o futuro de ver seus genes se fortificarem e se perpetuarem – essa é parte emocional e novamente não tangível, mas contam também os projetos visíveis de vê-lo estudar, viajar, fazer dele uma pessoa e tê-lo como uma grande e constante companhia. Com ele vivo o mundo era uma escada rolante subindo; quando ele morreu, nem se pode dizer que essa escada rolante parou. Na verdade, ela desceu despencando. A CULPA POR ESTAR VIVA Ocorreu em mim uma inacreditável descontinuidade. Eu perdi meu presente e, sem presente, naufragou meu futuro. Finalmente, a morte de um filho interrompe o inexorável, mas natural caminhar do tempo: estamos culturalmente preparados para assistir, primeiro, à morte de nossas bisavós, avós e pais – ou seja, daqueles que primeiro chegaram ao mundo. O falecimento do descendente, portanto, interrompe essa ordem estabelecida de vida e morte e a mulher-mãe enlouquece ao triste estilo dos incrédulos que não se cansam de perguntar “por que, por quê? Por quê?”. Dá culpa muito sentimento de culpa. Em meu caso, também a culpa, como se culpa houvesse, se desdobra em dois planos. Novamente a culpa da alma, a da ordem natural interrompida de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. Há o desespero que somente a desesperada sabe qual é. Agora, no angustiante luto cercado de símbolos, eu atravesso noites a fio me indagando: “Vi” essa cena não está invertida? Não sou eu que tenho de estar morta e você vivo? Despedaçada prossigo. Na subversão do tempo dos vivos e dos mortos, quando gente pequena morre antes de gente grande, ou na “traição do tempo”, como às vezes prefiro definir, já não vale o lugar-comum que repetimos e julgamos toda dor aplacar: “Dê tempo ao tempo que a dor passa.” Não. O tempo estanca e não há lenitivo; e entre aqueles que se especializam em cuidar delas é impossível quantificar um período de luto. “Perder um filho é o maior stress que o ser humano pode passar. Não dá para dizer quanto dura esse luto, ele pode ser eterno”, diz a psicólogo Éster Affini, especializada no atendimento desses casos. Luto eternizado e tempo estancado. Que nome dar a essa dor? Essa dor não tem nome. POSTADO POR UMA MULHER


publicado por araretamaumamulher às 13:46 | link do post | comentar | favorito

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