Terça-feira, 02.03.10





Quando vi o cartaz ao lado, fiquei chocada. Trata-se de uma campanha da OAB-SP para o Dia Internacional da Mulher. Em letras garrafais, fazem à pergunta “Quantas vezes ainda vamos apanhar para aprender?” e, em letras miúdas (não dá pra ler nem na imagem ao lado nem na do site), afirmam: “A violência contra a mulher atinge toda a família”. Isso acontece todos os dias. Se você chora em silêncio, apenas piora a situação. Proteja-se. Violência contra a mulher é crise. Ligue 181 e denuncie.
Nossa sociedade tem por hábito insistir na obediência através da agressão, e as mulheres são as principais vítimas disso. Os homens são ensinados desde criancinhas a serem agressivos, não levarem desaforo pra casa nem aceitarem mulheres lhes dando ordens (tanto é que são pouquíssimos os homens que sofrem violência doméstica). Já as mulheres são ensinadas a serem dóceis conciliadoras e perdoarem agressões, pois o/a agressor/a estava fora de mim, coitado! (notem que aqui quem agrediu se torna uma vítima), ou então ele/a fez isso para corrigi-la, afinal, só quer o bem dela (o velho argumento da surra como prova de amor). Em parte, essa postura se deve a uma prática que perdurou por muitos séculos, denominada ius corrigendi: o pai ou marido responsável pela mulher poderia agredi-la fisicamente para corrigir seus hábitos. Não só havia previsão legal para essa prática, como também os juízes a consideravam válida e adequada.
Embora sempre pensemos na agressão feita pelo cônjuge, são tão comuns os casos de violência contra mulheres praticados por pai, mãe, avós, sogros e irmãos que a Lei Maria da Penha (art. 5º, II)  prevê punição para qualquer pessoa que agrida uma mulher de seu círculo familiar. Colocar a culpa da agressão no álcool, desemprego ou qualquer outro fator é esconder que a violência doméstica como forma de correção ou intimidação das mulheres é prática corriqueira em nossa sociedade. Não se trata de um acontecimento isolado (como os fatores desencadeantes da violência podem fazer crer), mas de uma prática familiar que, ou é aprovada pela sociedade, ou é encoberta para não criar mais “problemas”. Por problemas, entenda-se a necessidade de mudar o paradigma de conduta social para não aceitar mais a violência como forma de educação, nem de obrigar outra pessoa a ter determinado comportamento, e muito menos descontar frustrações através da agressão. Isso envolve muita reflexão, auto-controle e a capacidade de considerar as mulheres como seres humanos e sujeitos de direito, coisas que raramente agressores conseguem compreender.
Explicado isso, voltemos à campanha da OAB-SP. Talvez o objetivo da pergunta no cartaz fosse mostrar que as mulheres também são participantes da violência cometida contra elas ao não denunciarem as agressões. Mas a fatídica pergunta se vale do velho ius corrigendi ao insinuar que as mulheres estão apanhando para aprenderem que precisam denunciar o agressor. Por essa ótica, as mulheres merecem sofrer a violência até terem forças para denunciarem o agressor e darem um basta na relação. Como já disse antes, precisamos abolir essa mentalidade de ius corrigendi, e parar de considerar a surra como uma forma de educação eficaz. É lamentável que uma campanha que pretenda defender os direitos das mulheres apele para uma prática que sempre as vitimou.
A mentalidade da campanha, ao invés de oferecer apoio, e melhorar a estrutura para acolhimento das queixas de violência, está jogando a responsabilidade da denúncia para as mulheres agredidas, que não têm a menor condição de reagir sozinhas. Elas são a parte mais fraca da relação, pois raramente têm apoio da família, dos amigos, da sociedade ou do aparato estatal. Não adianta dizer que há apoio estatal quando não há programas de atendimento psicológico suficientes, nem policiais capacitados para atender aos chamados ou registrar a ocorrência adequadamente, nem juízes preparados para aplicar medidas protetivas. Querer que a mulher, fragilizada e presa no conflito “devo ser dócil e aceitar a violência x devo denunciar e perder tudo o que eu tenho” assuma sozinha todos os riscos, inclusive os prejuízos sociais, que envolvem a denúncia da violência, sem proporcionar o apoio estatal necessário para ampará-la em suas reivindicações, é praticamente condená-la a continuar sofrendo violência, com a agravante de deixá-la mais frágil, isolada e desiludida, pois a solução que lhe faria justiça não se realizou.
Pra piorar, a nota em letras miúdas insinua que a família é mais importante que a mulher ao afirmar que “a violência contra a mulher atinge toda a família.” Enquanto não entenderem que a violência atinge primeiro e principalmente a mulher, não conseguiremos reduzir o número de casos de violência doméstica. À primeira vista, pode parecer uma implicância boba, mas quando juízes optam por absolver um agressor para não prejudicar sua imagem de pai de família, ou policiais deixam de registrar a agressão porque querem o bem e a estabilidade da família, estão fechando os olhos para a violência cometida contra as mulheres e dizendo que manter uma família é mais importante do que preservar a integridade física e psicológica das mulheres.
Fiquei muito decepcionada com esse cartaz. Jamais imaginei que uma entidade com o porte da OAB-SP faria uma campanha que, no fim das contas, legitima o ius corrigendi, joga a culpa pelo silêncio nas mulheres agredidas e ainda minimiza sua dor em prol da família. É triste constatar que ainda falta muito para que os advogados, árduos defensores da cidadania, se lembrarem de que as mulheres também são cidadãs e merecem ser tratadas de forma digna, não através doius corrigendi.



publicado por araretamaumamulher às 05:53 | link do post | comentar | ver comentários (3) | favorito

Sexta-feira, 08.01.10
O livro O SEGUNDO SEXO, escrito pela francesa Simone de Beauvoir, lançado em 1949, marcou um novo momento para o debate sobre a condição das mulheres e a relação entre os sexos. Publicado em dois volumes, é uma obra minuciosa, escrita com todo o rigor que caracterizava a autora, que utilizou conhecimentos de várias disciplinas tais como história, filosofia, economia, biologia e também de experiências de vida para compô-lo com o intuito de colocar a nu a condição feminina.

NALU FARIA

Beauvoir buscou mostrar que a própria noção de feminilidade era inventada pelos homens e tinha como intenção que a auto-limitação das mulheres. Questionava que, apesar de todo o avanço da humanidade até o século XX, a construção das mulheres como inferiores e sua posição de subordinação permaneciam, e eram poucas as pessoas que aceitavam denunciar ou condenar essa situação, mesmo entre as mulheres. Dizia que as mulheres tinham que se adequar aos ideais e interesses masculinos. Realizarem sua feminilidade as convertia em objetos e presas.

Por isso, as mulheres tinham que superar o eterno feminino que as engessava e formar o seu próprio ser, escolher seu próprio destino, libertando-se das idéias preconcebidas e dos mitos pré-estabelecidos. O livro buscou justamente desnaturalizar a construção da feminilidade e mostrar que esta é uma construção social. Foi daí que se tornou célebre a frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”.

Simone de Beauvoir pode ser considerada herdeira da primeira onda do movimento feminista, que teve nas francesas grandes expoentes como Olympes de Gouges, Flora Tristan, Louise Michel e tantas outras. O livro O SEGUNDO SEXO influenciou de forma decisiva o surgimento da segunda onda do movimento feminista, iniciada no final dos anos 60. Já foi traduzido para mais de 70 idiomas e continua sendo uma referência fundamental para as novas gerações e para o feminismo atual, inclusive para aquelas que são criticas à visão de Simone de Beauvoir.

A segunda onda do feminismo teve como centralidade as relações entre o mundo público e o privado e trouxe para o debate que aquilo que se vive na vida pessoal e familiar é político. Isso se deu tanto em relação às relações familiares, à sexualidade, ao afeto, quanto em relação ao trabalho invisível e não reconhecido das mulheres, a desigualdade salarial, a exclusão dos espaços de poder. A segunda onda defendeu a construção de um movimento autônomo, construído e dirigido pelas mulheres. Da mesma forma, colocou em debate a necessidade de construção de autoconsciência das mulheres como caminho para romper com o modelo de feminilidade que as aprisionava. As mulheres deveriam agir com liberdade e autonomia para decidirem por si mesmas seu destino, serem sujeitas de suas próprias vidas.

A atualidade do pensamento de Simone de Beauvoir

Atualmente, é cada vez mais comum ouvir que a vida das mulheres mudou muito, que já conquistaram tudo. Mas junto com isso, cresceu uma outra idéia de que as mulheres são mais protetoras, acolhedoras, cuidadosas, éticas. Essas características, muitas vezes, são usadas como argumentos para dizer que as mulheres são mais eficientes ou, até mesmo, superiores. À primeira vista, isso pode parecer algo positivo, como se fosse um contraponto às idéias de subordinação e inferioridade das mulheres, e assim, as teses de O SEGUNDO SEXO teriam sido superadas. No entanto, essa visão vincula as habilidades construídas pelas mulheres à maternidade e considera que existe uma essência feminina, fixando-as em seu papel tradicional. Portanto, segue não reconhecendo que as mulheres são dotadas de inteligência e razão, ao mesmo tempo em que vincula suas características à biologia.

Os dados atuais em relação à condição das mulheres mostram que um pequeno número obteve ganhos expressivos. No entanto, as mulheres são as mais pobres; são a maior parte dos desempregados; cada vez mais têm a responsabilidade de manter suas famílias sozinhas; tem aumentado sua contaminação pelo HIV; há um incremento no tráfico e na prostituição, etc. Há também um evidente retrocesso ideológico. Entre os exemplos disso está a expansão da mercantilização da vida e do corpo das mulheres, que também é marcada pela dimensão de classe.

De um lado, as privatizações dos serviços públicos e a diminuição do Estado de bem-estar, sob o neoliberalismo, aumentaram o trabalho doméstico e de cuidados. Ou seja, no mundo inteiro, foi sobre os ombros das mulheres que recaiu uma enorme carga de trabalho, com a diminuição das políticas sociais.

O outro lado da mercantilização é a imposição de um padrão de beleza como norma a ser cumprida obrigatoriamente e que, supostamente, pode ser comprada no mercado. Dessa forma, são vendidas centenas de produtos e tecnologias que prometem eterna juventude e o corpo perfeito, ou seja, magro. Essa perspectiva de beleza está vinculada ao que se pode consumir. Ao lado da indústria de cosméticos e da beleza, outro setor que aufere grandes lucros com a mal-estar das mulheres é a indústria de medicamentos. Esta também vende ilusões de bem-estar e felicidade enquanto invade o corpo das mulheres e nega sua autonomia. Mas, enfim, as mulheres devem ser agradáveis, flexíveis e bonitas, para mostrar que são adequadas e femininas. Quando uma mulher não se preocupa com a aparência, considera-se que algo que está fora do lugar, é um desvio. Assim, podemos concluir que continuamos diante de um modelo de feminilidade que aprisiona e nega a liberdade e a autonomia para decidir.

Nossa luta feminista por uma transformação integral da sociedade seguirá até que exista uma verdadeira igualdade entre todas e todos. Isso inclui que as mulheres possam decidir que mulheres querem ser e, então, superaremos esse modelo de feminilidade voltado para manter a desigualdade nos diversos âmbitos da vida. A contribuição de Simone de Beauvoir seguirá como inspiração que nos alenta a seguir em luta até que as mulheres sejam livres.

NALU FARIA é coordenadora da SOF - Sempreviva Organização Feminista. Artigo originalmente publicado na "Folha Feminista", novembro de 2009.

Enviada para RETRANS e-VenToS por Marha Narvaz
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"...A suficiência é uma relação mais livre que a necessidade..." Viveiros de Castro


publicado por araretamaumamulher às 18:15 | link do post | comentar | favorito

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