Sábado, 27.03.10
envelhecer é ficar fora de foco:
os traços vão ficando imprecisos
e o contorno do rosto acaba por se decompor
como um pedaço de pão a se dissolver na água.
O que tem sido narrado acerca da velhice e com que olhar? Nosso mundo atual privilegia a imagem exterior e o belo quase sempre está associado à juventude. Pensar sobre a velhice, no aspecto físico do ser, requer pensar também a respeito do olhar, pois as dificuldades encontradas pelos idosos para se relacionarem com o outro, a partir da degradação do corpo, ocorrem principalmente por causa do olhar contaminado pelo preconceito. Quando se trata do envelhecimento do corpo feminino, há ainda mais rigor desse olhar e a sexualidade da mulher velha é geralmente vista como inexistente ou inadequada. Nos contos “Ruído de passos” e “Mas vai chover”, Clarice Lispector trata da sexualidade e expõe uma face da velhice que não costuma ser discutida, especialmente quando se trata do desejo feminino. Essa exposição de um drama íntimo sob forma de literatura permite-nos refletir sobre o tema visto com preconceito pela sociedade, e observar sua forma de representação.
A mulher velha é tida como alguém que não mais sente desejo e, se sente, não é vista como alguém digna de tê-lo satisfeito. Nossa sociedade é centrada na beleza do que é jovem, principalmente no que diz respeito à mulher. Há um forte estigma que desvaloriza a mulher mais velha. Normalmente a vida sexual de uma mulher mais velha é alvo de chacotas, comentários, especialmente quando se trata de um relacionamento com homem mais jovem. Essa é a temática discutida no conto “Mas vai chover”; e a questão do desejo sexual que persiste em uma velhinha de oitenta e um anos, Cândida Raposo, é apresentada em “Ruído de passos”. No primeiro, a exploração e o desrespeito do jovem com quem Maria Angélica, de sessenta anos se relaciona apaixonadamente é o foco da discussão; no segundo conto, a voz narrativa apresenta-nos a angústia de quem vive o “inferno” do “desejo de prazer” sem poder satisfazê-lo, da superação da vergonha em confessar isso ao médico a quem pede ajuda, para libertar-se desse martírio.
Em ambos, as mulheres precisam vencer o preconceito da idade para ter esse desejo sexual e satisfazê-lo, seja de modo solitário ou ‘negociado’ com um jovem. Num a personagem velha teve a coragem de crer no amor do jovem por ela e atirou-se a essa relação; noutro, a velhinha teve a coragem de expor sua angústia e permitiu-se resolver-se. Nesse, a memória é elemento desencadeador do processo de libertação do corpo para o prazer, ao trazer para o cenário de sua atuação solitária o “ruído de passos” de seu marido.
A temática do corpo degradado surge freqüentemente em narrativas do envelhecer, porém, como forma de resistência, não só trazendo a discussão da decrepitude como impossibilidade de comunicar-se ou de agir, mas também como novos modos de estar no mundo.
A modificação ocorrida no corpo desencadeia processos de mudança nas formas de se estar nos espaços, de perceber-se nessa nova condição, de se posicionar frente às circunstâncias e frente ao outro. Assim, encontra-se a questão da degradação do corpo unida à recuperação do mesmo pela memória, nos textos “Significado oculto de um corpo velho”, conto da escritora portuguesa Maria Isabel Barreno, e A obscena senhora D, romance de Hilda Hilst, nos quais as personagens apresentam postura diferente diante do olhar do outro, como que para recuperar uma dignidade desse corpo, para chocar o outro e “fazer ver” de outra forma as marcas impressas pelo tempo no corpo velho.
Há narrativas que apontam o olhar do outro vendo de fora o seu diferente, porém narram também o estranhamento não só desse que olha de fora, mas o daquele que se estranha. No conto “Significado de um corpo velho”, a literatura faz-se tradutora das inscrições do corpo envelhecido. Assim como a velhinha protagonista, ao relembrar seu corpo jovem, a narrativa percorre o velho corpo marcado e sua estrutura desgastada pelo tempo. A voz narrativa trabalha a linguagem como se fossem fios reconstituindo a dignidade de um corpo que, antes da decrepitude, sustentara todos os labores de uma vida; refere-se ao corpo velho como um rico texto a ser lido: “seu corpo era um texto vivo, a narrativa de uma vida que ela tinha de honrar”.
O olhar do rapaz sobre ela a faz reportar-se a si própria, como se estivesse frente a um espelho. O seu olhar sobre o jovem corpo do rapaz remete-a a um passado, o do seu próprio corpo jovem. Sua pele, seus ossos e seus músculos são tema da invocação de uma memória impressa na carne, de uma memória impressa na pele: “pensou nos ossos doridos (...) Doridos sim, mas por há tanto tempo lhe servirem e modelarem a postura, fielmente. Amou-os e agradeceu-lhes” (SOCV, 71-76).
O encontro com o rapaz, inicialmente afronta-lhe a velhice, com seu corpo forte, ágil, jovem. Depois, provoca-lhe essa reflexão sobre o quanto já estivera nessa condição jovem e o quanto já fizera ao longo da vida com esse corpo que envelhecera, porém não o encara como uma ruína e sim como uma obra esculpida pelo tempo, redesenhada ao longo dos anos vividos, através de seu trabalho, da fatura de tudo o que fizera com as próprias mãos. Ao compreender isso ela se sente melhor: “deixou de ser apenas sua habitante; saiu e olhou-se de fora”, descobre que possui o “olhar que renovava sua configuração”.
Deste modo, a velha senhora re-significa os sinais de velhice em seu corpo. Ela passa a encarar o corpo debilitado não como algo fracassado, inútil, mas como “escultura” viva, cujas marcas impressas inscrevem a história de uma vida, não apenas marcas de dor e sofrimento, mas também resíduos de prazer e alegrias. Cada ruga conta a história de um pedaço de sua vida, dor ou prazer, tristeza ou alegria, mas vida.
A partir dessas emoções, a velhinha acumula toda sua energia para expressar essa nova perspectiva de si num gesto, tocar a mão no ombro do jovem rapaz. Ao sorrir para ele sem dentes, escancaradamente e sem vergonha de sua gargalhada senil, a velhinha horroriza o jovem, “que curiosidade e fascínio lera nos olhos do rapaz do leite; que perplexidade tão absolutamente muda a do jovem macho face à velha fêmea quantas passagens secretas apontadas nesse território de mudez”. Essa senhora compreende sua força, seu poder feminino nas mais diversas faces, da mãe à bruxa, além de deter o conhecimento de “sabedorias únicas”. Por isso consegue superar a baixa estima, encara o jovem sem pudor e passa a amar-se.
O romance A obscena senhora D dá-se por meio de uma narrativa desenfreada de
Hillé, numa mistura de invocação a deus, lamento e narrativa de memórias. Ela é narradora tanto de uma vida de indagações quanto de indagações de uma vida, assim, narra em primeira e em terceira pessoa, mesclando outras vozes de fora, na mesma narrativa; ela é a protagonista de sua história e da de outros, ela mesma é muitas. Hillé conta sua história que é também a história do outro, olha de dentro e olha de fora para entender a vida para saber da morte, é como a figura do “recordador” de que fala Ecléa Bosi, pois “o velho narrador revivendo, está aprendendo a morrer”. Hillé não agüenta a vida, foge para um mundo seu, isola-se de todos, até do marido quando vivo criando seu mundo embaixo da escada. Hillé narra uma experiência profunda – “naquele momento em que ela se corporifica (e se enrijece) na narrativa” pode haver a perda de sua história, porém “o mutismo também petrifica a lembrança que se paralisa e sedimenta no fundo da garganta como disse Ungaretti”iv. Deste modo, é preciso narrar. Esse é o movimento da personagem, narrar para não petrificar a lembrança, lembrar para compreender, entender para poder morrer. Como morrer sem ter entendido a vida? Essa é a grande inquietação da personagem, que ecoa também em outra narrativa da mesma autora, Estar sendo. Ter sido, cujo personagem principal é amigo de Hillé e chega a explicitar essa questão.
Em OSD  aborda-se decrepitude do corpo, isolamento, impossibilidade de comunicação, na medida em que a protagonista Hillé recusa-se a relacionar-se com os outros de forma convencional –, o abandono e o estranhamento dessa mulher envelhecida e solitária, vista pelos vizinhos como bruxa, como louca, temida por eles, todos esses temas são elementos construtores da personagem também denominada Senhora D, de derrelição, de desamparo. Estes constituem também o texto, na medida em que são temas recorrentes da reflexão da narradora personagem.
No entanto, A Senhora D recusa-se às formas convencionais de encontro. Está em conflito consigo, com os outros, com o seu deus, Ehud, a quem questiona sobre tudo. Vive em busca de repostas, da razão. Representa a falta de viço em sua vida com o gesto de substituir seus dois peixes mortos por peixes de papel pardo, que recorta e coloca no aquário, periodicamente.
Segundo Merleau-Ponty “o sensível não é feito somente de coisas. É feito também de tudo o que nelas se desenha, mesmo no oco dos intervalos, tudo o que nelas deixa vestígio, tudo o que nelas figura, mesmo a título de distância e como uma certa ausência”vi. A personagem materializa o desenho das coisas substituindo a própria coisa por sua representação ao trocar os peixes por recortes de papel em forma de peixe.
Hillé invoca a memória do que fora, denotando a dificuldade em aceitar a degradação do corpo pelo envelhecimento: “Ter sido e não poder esquecer. Ter sido e não mais lembrar”. “Ser e perder-se” (OSD, 76). O que ela é no presente figura no texto como mera representação do que fora no passado, assim como seus peixes de papel, pardo e sem vida como ela se sente, apenas um reflexo da existência em outros tempos: “tendo visto, tendo sido quem fui, sou esta agora? Como foi possível ter sido Hillé, vasta, afundando os dedos na matéria do mundo, e tendo sido perder essa que era, e ser hoje quem é?” (OSD, 24). A personagem indaga-se sobre a vida, pensa-a falando dos dejetos, das excrescências, dos detritos, do lixo. Reflete acerca do corpo, por dentro e por fora, indaga sobre a vida a partir dele: “a vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca compreender” (OSD,53). A narradora fala de gosma e putrefação; de tudo o que envolve a carne, que chama de barro; da vida, partindo da matéria, perecível e frágil, para poder narrar a realidade humana, para poder dizer do fio tênue que liga o corpo à vida e, a vida à morte.
Porém, a personagem traz uma nova perspectiva, a da possibilidade de renovação, já que troca os peixes que recorta toda semana, pois estes se deterioram facilmente. Assim como ela, que troca de máscaras para poder ser sempre outra. Hillé pode ser muitas e seus peixes podem ser outros.
O jogo de ausência e presença, do visível e do invisível é representado dentro da narrativa em perspectiva, pois a protagonista faz a representação da representação com a ausência dos peixes, trocados por outros de papel, e representa a própria ausência ao mascarar-se, ao ser outra. Hillé ausenta-se estando presente, “a própria ausência está enraizada na presença”, diz Merleau-Ponty e “as ‘negatividades’ também contam no mundo sensível”. Hillé é tão lúcida, tão presente neste mundo, que se permite o devaneio, a loucura, a ausência de si, pelo menos no olhar dos outros sobre ela. Essa é sua forma de estar no mundo, ausentando-se dentro de uma presença marcante.
A relação da personagem com os outros dá-se por uma janela. De fora, vêem-na como um bicho, como uma louca. Ela, por sua vez, constrói a imagem pela qual quer ser vista. Prepara máscaras horripilantes e coloca-as em seu rosto antes de abrir a janela: “olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Ao ser visitada, repele as pessoas que tentam aproximar-se dela, mostrando sua nudez senil. A narrativa deixa claro que a repulsa dos outros por sua nudez é, na verdade, pelo corpo degradado, é a recusa em ver o corpo envelhecido. A imoralidade está na velhice do corpo.
Nesse sentido, pode-se aproximar a postura de Hillé e a da velhinha do conto de Barreno, analisado há pouco, em que ambas as personagens chocam o outro pela exposição escancarada do corpo velho. Além disso, as duas desafiam pelo olhar as formas de ver do outro, na medida em que apresentam-lhe a face. Uma apresenta-se mascarada, a outra, desmascarada. Hillé cobre o rosto velho com máscaras horripilantes, a velhinha de Barreno, abre um sorriso desdentado, que normalmente é escondido do olhar alheio. Hillé quer espantar os outros com as caretas que coloca no lugar de seu rosto, desfigurado pelas marcas do envelhecimento, “o que é visto se impõe ao espectador com força suficiente como para determiná-lo ao sabor da sua percepção”ix. A personagem substitui o horror do que ela vê em si, espantada pela velhice, pelo que pode ser um espanto para o olho do outro, mascarando-se e escondendo o rosto, que é a face normalmente exposta ao olhar alheio. Ao mesmo tempo, revela sua intimidade e o que sempre fica escondido é exposto.
Assim, Hillé apresenta-se aos olhos dos outros tal como um fenômeno artístico, já que intencionalmente causa estranhamento ao desnudar-se ou ao mostrar-se com caretas e focinhos, grunhindo, pois a personagem remove um procedimento “do âmbito da percepção automatizada”.
Deste modo, já que a visão constitui “o laço vivo entre nós e o mundo, entre nós e os outros”, Hillé, exterioriza e estende seu questionamento a respeito do mundo ao escandalizar o outro, ao desestabilizar as relações primeiro dentro dela, depois dentro de casa, e no mundo, ao abrir a janela e mostrar-se chocante: “o olhar tem a capacidade de pôr em questão toda realidade”. Assim, a aparição horrenda de Hillé instiga-nos a pensar sobre o olhar que não consiste apenas em “ver e ser visto (e este é o fracasso do olhar contemporâneo, a condição trágica do homem moderno que só pensa no ver e no ser visto)”, pois olhar quer e pode ser mais que isto, ele pode fazer ver além do visível.
Assim como Hillé desafia o olhar do outro, duas personagens também o fazem, porém com teor diferente. A sexualidade, o desejo e o despojamento da vergonha de ser velha, expressos por atitudes, ao exibir um olhar quente e escancarar um sorriso desdentado sem nenhum pudor, a velhinha frente ao jovem leiteiro; ou ao relacionar-se sexualmente com o jovem entregador da farmácia, Maria Angélica; ou ao abrir a janela para ser vista com máscara horripilantes ou levantar a saia para mostrar o que geralmente se esconde, a Senhora D, a figura da derrelição, essas mulheres “mais vividas” querem mostrar outras possibilidades de ser e de estar no mundo, antes de deixá-lo.
Ver a juventude do outro, estampada em seu rosto, denotada em seu corpo é um tapa na cara, tal qual o que se pode sentir revendo fotografias da juventude, quando se entra em idade avançada. É a memória que aciona esse lembrar do que se foi. A consciência dos limites e da degeneração que a velhice traz causam a sensação de impossibilidade de voltar a ser. Hillé escancara a velhice aos olhos do leitor, narra poeticamente a vida, crua, e aponta para a morte, mas não antes de ter compreendido a vida, não como único caminho. Ela tem medo, mas às vezes acha morrer única saída para essa vida difícil de agüentar, mas não desiste de entendê-la, de buscar novas formas de ver e de ser vista. Vive a interrogar-se sobre o sentido da vida e isso é dado ao leitor pela voz narrativa, que costura presente e passado da história da narradora personagem, apresentando seus questionamentos via memória de diálogos com Ehud, mescladas às suas interrogações a deus.
Deste modo, fica evidente a memória como ponto de apoio central daquele que envelhece. A partir desta dão-se as relações dos idosos com os outros e com o mundo, ou essas relações os remetem a ela. É por meio da memória do que se foi ou se possuiu que se tem a consciência das faltas atuais, das ausências, das deficiências, do que não se é mais, daquilo que não mais se tem. E a constatação dessas diferenças dá-se principalmente no corpo.
A Senhora D sabe que sua obscenidade está na velhice, no estar degradado de seu corpo, e mostrá-lo é um ato obsceno, envelhecer é obsceno em uma sociedade que valoriza o novo e o que se vê, e que só acha belo o jovem, que cria espaços para este, esquecendo-se de adaptá-los também para os idosos, propiciando-lhes a continuidade de um viver por si, com prazer e alegria, e que, principalmente, os veja de outro modo, como seres com vida, com possibilidades para além, abrindo perspectivas para que se sintam assim.
O mundo oferece muitas possibilidades para serem vividas com o corpo jovem, que pode estar-nos mais variados espaços e de modos diferentes. Para o corpo velho, os espaços são restritos, por seus limites. Alarga-se então o espaço da memória. Esta assume caráter fundamental na vida dos idosos, que têm muito que lembrar e resgatam suas vidas pela lembrança de um tempo em que era o que a sociedade valoriza, recuperando, por instantes, sua “importância neste mundo”.



publicado por araretamaumamulher às 10:48 | link do post | comentar | favorito

Sexta-feira, 26.02.10
No mundo judaico-cristão a idéia de um Deus Masculino (seria mais correto dizer: Deus Masculinizado) nasce com a revelação da Thorah. O primeiro versículo da Bíblia Hebraica diz: BERESCHIT BARA ELOHIM (No princípio criou Deus).

A palavra Elohim (Deus) é do genero masculino plural. Masculino e não feminino. Nasce assim, toda uma mentalidade e uma maneira de nomear a Divindade. Elohim é um Deus Masculino, criador dos Céus e da Terra e formador da humanidade. Os outros nomes usados para a Divindade na Bíblia, também serão masculinos. Isto seguirá uma lógica cirúrgica, pois o Deus Masculino criará primeiro um homem e o favorecerá com uma parceira sexual: a mulher.

A história bíblica continua. Abraham (o patriarca Abraão) deixa sua cidade em Ur na Caldéia e busca um paraíso para a futura Tribo Hebraica. A Terra escolhida assusta a mentalidade constituída. Canaan orbita na cultura politeísta do fértil Tigre-Eufrates. Ali, deusas da terra compartilham seu leito com deuses do Céu. A Natureza exala seu perfume sedutor e os animais transcendem sua forma, revelando seu simbolismo iniciático. A Bíblia reconta a mitologia assirio-caldáica e a masculiniza. A harmonia dos contrários (yin-yang) é monopolarizada. O feminino desaparece dentro do masculino. O Patriarca Abraham ouve o chamado de seu Deus e funda uma religião centrada no homem, no Céu e no culto de um deus solitário. Fundamentando o sagrado masculino, um rito santificará o maior símbolo do poder dos homens: o pênis. O Rito da Circuncisão é uma aliança entre o macho e seu deus. As mulheres estão de fora, são profanas, não participam do ato religioso.

Entra em cena um segundo e importante personagem: Moisés. Educado no Egito dos Faraós, entre deuses e deusas que se misturam à vida quotidiana, Moisés aproveita a sólida teologia egípcia e reforma o antigo legado de Abraham. Ele é o homem que recebe a Lei das mãos do viril Deus de nome impronunciável: YHVH. O sacerdócio mosaico não abriga mulheres, não existem sacerdotisas. Todas as reminescências do paganismo assírio-egípcio são passadas numa peneira. Com Moisés o feminino sagrado deixa de existir. Judeus e cristãos não conhecem o poder sacerdotal da mulher. Definitivamente, Moisés coloca uma barba em Deus e leva para longe do Templo aqueles estranhos seres que sangram com a Lua: as mulheres!

Agora é a vez de um novo personagem: Yeschua Bar-Yoseph, mais conhecido como Jesus de Nazaré. Judeu por nascimento, grande conhecedor das escrituras sagradas de seu povo, ele não criou nenhuma religião. Jesus foi judeu até o fim de sua vida. Pregador carismático, poeta, andarilho, Jesus era seguido por homens e principalmente por mulheres. Os ensinamentos de Jesus, uma reinterpretação da Thorah a partir dos pobres de carne e de espírito, foi utilizado como instrumento de justificação para a tortura e a morte de milhares de mulheres. Com Abraham, Moisés e Jesus, estão formadas as bases teológicas do masculinismo sagrado. Um mundo onde o feminino apenas transparece.

Fora do mundo judaico-cristão, ideologicamente, uma brisa pareceu favorecer as mulheres. Contudo, o excessivo romantismo atrapalha bastante o discernimento dos modernos grupos pagãos e wiccanos. Uma rápida olhada na situação da mulher nas culturas nativas da América ou da áfrica, traça uma triste história de mutilações, raptos e escravidão familiar. Mas, não entraremos aqui em difíceis e insolucionáveis questões culturais. Houve um tempo, porém, em que a Divindade era adorada como mulher. Para o homem primitivo, pensar no divino como extensão de si mesmo era natural. A mãe, origem de tudo, parece o exemplo mais próximo e familiar.

Por volta de 70.000 AC, encontramos o Culto do Urso na Europa. Segundo paleoantropólogos, este foi o culto mais antigo no continente. Os primitivos olhavam o urso como um ancestral, um avô. Onde é hoje a cidade suiça de Berna (ber é urso em alemão), foram encontradas várias grutas datadas da idade atrás mencionada. Suportes, pedras-ara, ossadas humanas e ursídeas, indicavam a função sagrada daquele lugar.

O que mais chama a atenção é uma estranha evidência. Estamos predispostos a chamar esta primitiva e espontânea religião de "Culto do Urso". Mas, na verdade, assistimos ao nascimento do primeiro culto ao feminino: o "Culto da Ursa".

A Grande Ursa é o arquétipo da Deusa Mãe protetora, altiva, fecundadora e fértil. Sua aparência quase-humana, nos remete ao mistério da feminilidade. As deusas-animais sobreviventes beberam, direta ou indiretamente, do leite da Grande Ursa:
- Artio, Callisto, Rhpisunt: queridas deusas-ursa;
- Acca Laurentia, Spako, Rhea Silvia: temíveis deusas-loba;
- Epona, Hekate, Menalippe, Samjuna: incompreendidas deusas-égua.

Caminhando pelo universo maternal e divino, notamos que as mais antigas obras de Arte são imagens de mães. Encontradas entre as datas de 35.000 a 10.000 AC, da áfrica à Europa, elas forma batizadas de "Vênus": a Vênus de Willendorf, a Vênus do Nilo, etc. Na Antiga Grécia as primitivas divindades femininas são substituídas e resignificadas pelo patriarcalismo oriundo da ásia Menor. Exemplos disso são: Ariadne, a Toda-Poderosa Senhora Mãe da Ilha de Creta, transforma-se em personagem secundária da Mitologia; Hekate, Deusa Universal é jogada vergonhosamente no Submundo; as aladas e benéficas Sereias são encarceradas no mar e tornam-se sedutoras malignas de homens. Os Cultos Agrários da Velha Roma também mudados. O Sacerdócio Feminino dos Sabeus, perde para o ícone do machismo religioso do Ocidente: o sacerdote estatal Romano. Estes personagens deixarão herdeiros seculares: os padres católicos. Roma dará um golpe quase fatal no coração feminino. Ela transfere o sacerdócio da mulher no Templo para o pé da lareira, em casa.

É importante que o Movimento Neo-Pagão saiba o que quer. Queremos uma volta às antigas tradições, mas mesmo entre os pagãos existiam (e existem) machistas. Antes de Roma e Grécia, o Egito deu o exemplo. Os Cultos e as divindades Lunares são trocados pelos Solares. Os deuses diurnos ofuscam os noturnos, os deuses luminosos apagam os sombrios. Sombra e escuridão passam a ser sinônimos de maldade e perigo. Na índia pré-Védica, os invasores indo-europeus submetem os povos druídas e o sacerdócio centrado na Terra Mãe. Mais uma vez a ocorre a injusta substituição. Kali, Naga, e outras Deusas telúricas viram acompanhantes de deuses dominadores.


publicado por araretamaumamulher às 05:00 | link do post | comentar | ver comentários (4) | favorito

Quarta-feira, 03.02.10
A mulher no início da Idade Moderna era considerada uma agente de satã. Em algumas sociedades antigas a mulher era venerada, com o tempo o homem passou a ter medo dessa mulher, fato comum nas sociedades patriarcais. A mulher era acusada pelo sexo oposto de ter introduzido o pecado, a desgraça e a morte na terra. A Pandora grega, a Eva judaica teria cometido o pecado original. O homem encontrou na mulher a explicação, o responsável pelo desaparecimento do paraíso terrestre. O antifeminismo é uma leitura errada do Evangelho. A igualdade defendida pelo evangelho cedeu lugar à exclusão da mulher da sociedade, lhe dando um papel secundário. Líderes da Igreja, já possuíam traços antifeministas, desde os primórdios do cristianismo, a mulher era considerada sinônimo de perdição. A sexualidade era pecado. A Igreja tinha uma postura misógina no século XVI, ela exaltava a virgindade feminina. Segundo Santo Agostinho, o ser humano possui uma alma espiritual assexuada e um corpo assexuado. O homem seria a imagem de Deus, a mulher seria inferior ao homem, devendo ser submissa. Tomás de Aquino, também dizia que a mulher era mais imperfeita do que o homem, inclusive sua alma, para ele o homem possuía mais discernimento e razão. A Idade Média Cristã aumentou a misoginia, poucas figuras femininas foram consagradas na Idade Média. A Virgem Maria foi posta em um pedestal, mas teve sua sexualidade desvalorizada. As ordens mendicantes, no século XIII, propagaram uma onda de misoginia, que nos século XVI, teve seu impacto aumentado, com as reformas protestantes e católicas. Naquela época existia uma misoginia com base teológica, na qual a mulher seria um ser predestinado ao mal, e deveriam ser tomadas precauções em relação a ela. Os clérigos presos à castidade tinham receio do sexo feminino, por isso escreviam sobre os perigos do sexo feminino, esses escritos oprimiam a mulher, hostilizavam-na. Havia uma guerra santa contra a aliada do diabo. Existia uma literatura misógina na Idade Média, no período moderno surgiu o antifeminismo clerical. O discurso misógino era normal no mundo monástico e foi reproduzido por diversos autores da Idade Moderna. O discurso dos teólogos difundiu a inferioridade da mulher, que representava um perigo para os padres, que constantemente caíam na tentação. A ação antifeminista da Idade Média foi muito difundida. Um trecho do livro Malleus Maleficarum, sintetiza bem o papel da mulher no fim da Idade Média e no início do período moderno: ... A repressão da Igreja ocorrer de várias maneiras (...): na negação da importância central do corpo no qual se expressa a Paixão; (...) na hierarquização patriarcal da Igreja, nos votos patriarcais de pobreza, obediência e castidade para seus sacerdotes, na inferioridade patriarcal da mulher na vida institucional da Igreja, principalmente na sua impossibilidade de ministrar os sacramentos e ocupar cargos em iguais condições com os homens, na paralisia da transformação sócio-política por concessões elitistas para assegurar a obtenção e manutenção do poder exercido dentro do dinamismo patriarcal. A Igreja pós-tridentina, impôs novas regras ás confissões para que houvesse mais transparência e os padres não fossem tentados. Os confessores passaram a propagar palavras de desprezo em relação às mulheres. A mulher é colocada no plano de insubmissão e inferioridade, a fundamentação era buscada na Bíblia. Muitos discursos foram produzidos para comprovar a inferioridade da mulher. O discurso médico falava da inferioridade física e biológica da mulher. Elas eram melancólicas, irritadiças e tudo mais que fosse negativo. Na verdade, havia uma falta de conhecimento do corpo da mulher, existia um tabu, fazendo com que o médico não se aproximasse muito dela. A imagem da melancolia da mulher surgiu na Antiguidade Clássica (Teoria dos Humores). Segundo os médicos, as mulheres não possuíam equilíbrio dos humores. Os humores eram os elementos formadores que davam origem a tudo. Os quatro humores eram: o sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma ou linfa. Os humores seriam responsáveis pelo temperamento. Os médicos sustentavam ainda que a mulher fosse um macho imperfeito. O discurso jurídico procurava apoio na medicina e na Igreja. Através disso criavam leis que aumentava a misoginia. Várias interdições surgiram contra as mulheres. O homem era o cabeça da casa, a mulher não possuía poder jurídico, não podia exercer a medicina, magistratura atividades eclesiásticas e educadoras. Os demonólogos leigos combinavam o discurso teológico, médico e jurídico para justificar o comportamento feminino, que era considerado fraco. A atmosfera misógina foi ampliada pela literatura e pelas representações iconográficas, que estavam ancoradas em juristas, médicos e teólogos. Os textos e figuras exaltavam ou detratavam a mulher, havia ambigüidade. Na exaltação o que estava sendo focalizado era a submissão ou a desasexualização, dessa forma a exaltação e a destratação pregavam a misoginia. A carga profundamente misógina e androcêntrica marcaram o período moderno.
Bibliografia: DELUMEAU, Jean. Os Agentes de Satã: a mulher. In: História do Medo no Ocidente, 1300-1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. KRAMER, Heinrich; SPREGER, James. Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras.


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