Terça-feira, 4 de Maio de 2010
Ser mãe é padecer no paraíso, quanta alegria e celebração à mulher que pode dizer isso – ela é mãe de filho vivo. Mãe de filho morto é mulher que desce ao inferno da dor, do desespero e da depressão. Sua vida, de céu não tem nada, há apenas um quedar-se insone, ansioso e impotente diante de um destino que não pode mudar. Se mães pudessem pressentir a morte inesperada de filhos, em crimes e acidentes, ou salvá-los de morte anunciada por enfermidade que vai se estendendo, simbolicamente tentariam aquilo que é fisiologicamente impossível: pelo mesmo e agora já inexistente cordão umbilical, através do qual os colocaram no mundo, os trariam de volta ao aconchego do útero. Sim, é nele, útero, que a constante dor emocional da morte, quase sempre psicossomatizada, lateja fisicamente.
Sinto dores intensas em meu útero até hoje – útero que já foi preenchido pelo feto, feto que virou filho, filho que virou sepultura. A dor não passa jamais. Emocional e fisicamente, é como se ela fosse mudando de lugar e me machucando em espaços diversos. O falecimento de um filho é dor que dói na alma e no corpo. Não há superação, mas tão somente adequação de seu dia a dia ao sofrimento.
Às vezes, quero acreditar que o meu filho não morreu. Há uma razão para isso, pendulando entre a filosofia e a biologia, essas duas áreas do conhecimento que são também elas, mães – preciosas mães do entendimento da condição humana: existem na vida dois fenômenos irreversíveis, ou seja, a maternidade e a morte. A mulher é uma mulher e quando dá à luz passa a ser uma mulher-mãe. Se seu filho morre, ainda assim ela continua sendo mãe. “Não existe ex-mãe”.
A DIFICULDADE DE OLHAR NO ESPELHO
Acredito que para toda mães que passa por uma experiência dessa a vida muda naquilo que é mais perceptível, ou seja, na rotina, na saúde, no ânimo e nos projetos. Mas muda também, e em doses alucinantes de padecimento, naquilo que é inconsútil, mas se torna marcado para sempre: a alma. “Onde está o meu Vi para eu abraçar, cuidar, beijar”? É como amputar um braço, não se recupera mais. É uma dor que é um buraco que nada preenche. Falou-se em alma da mulher-mãe, falou-se no desejo impotente de amparar o que já é inerte e assim faz-se necessário voltar aqui à teoria do luto. O que é essa alma? Como se dá o processamento da irreversível perda? O projeto de maternidade, bem como a maternidade consumada, é para a mulher uma espécie de “prolongamento de seu ego”, assim ensinou a humanidade o criador da psicanálise, Sigmund Freud, e dois de seus mais geniais seguidores – embora tenham rompido com o mestre no andar da carruagem do conhecimento humano – Melanie Klein e Jacques Lacan. Pode-se dizer, mesmo, que “é um ato narcisista da mulher e na criança ela vai projetar a si própria, o que não quer dizer que não a ame profundamente e para sempre”. Assim, quando o filho morre, três dores se sobrepõem. Em primeiro lugar, o “espelho-lago da mitologia de Narciso”, presente em todos nós, se parte e muitas mães órfãs mal conseguem olhar-se de fato num espelho de verdade. Eu não conseguia no início olhar no espelho, o meu olhar sangrava a minha alma. Fiquei oca. Em segundo lugar, a morte do meu filho interrompeu toda a perspectiva de futuro que depositei nele, inclusive o futuro de ver seus genes se fortificarem e se perpetuarem – essa é parte emocional e novamente não tangível, mas contam também os projetos visíveis de vê-lo estudar, viajar, fazer dele uma pessoa e tê-lo como uma grande e constante companhia. Com ele vivo o mundo era uma escada rolante subindo; quando ele morreu, nem se pode dizer que essa escada rolante parou. Na verdade, ela desceu despencando.
A CULPA POR ESTAR VIVA
Ocorreu em mim uma inacreditável descontinuidade. Eu perdi meu presente e, sem presente, naufragou meu futuro. Finalmente, a morte de um filho interrompe o inexorável, mas natural caminhar do tempo: estamos culturalmente preparados para assistir, primeiro, à morte de nossas bisavós, avós e pais – ou seja, daqueles que primeiro chegaram ao mundo. O falecimento do descendente, portanto, interrompe essa ordem estabelecida de vida e morte e a mulher-mãe enlouquece ao triste estilo dos incrédulos que não se cansam de perguntar “por que, por quê? Por quê?”. Dá culpa muito sentimento de culpa. Em meu caso, também a culpa, como se culpa houvesse, se desdobra em dois planos. Novamente a culpa da alma, a da ordem natural interrompida de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. Há o desespero que somente a desesperada sabe qual é. Agora, no angustiante luto cercado de símbolos, eu atravesso noites a fio me indagando: “Vi” essa cena não está invertida? Não sou eu que tenho de estar morta e você vivo? Despedaçada prossigo.
Na subversão do tempo dos vivos e dos mortos, quando gente pequena morre antes de gente grande, ou na “traição do tempo”, como às vezes prefiro definir, já não vale o lugar-comum que repetimos e julgamos toda dor aplacar: “Dê tempo ao tempo que a dor passa.” Não. O tempo estanca e não há lenitivo; e entre aqueles que se especializam em cuidar delas é impossível quantificar um período de luto. “Perder um filho é o maior stress que o ser humano pode passar. Não dá para dizer quanto dura esse luto, ele pode ser eterno”, diz a psicólogo Éster Affini, especializada no atendimento desses casos. Luto eternizado e tempo estancado.
Que nome dar a essa dor? Essa dor não tem nome.
POSTADO POR UMA MULHER