Quinta-feira, 29 de Abril de 2010
O que se passou com o Vi? Porque ele não conseguiu acreditar em outra saída senão a de ir para o caminho que ele estava trilhando? Eu sabia de sua agressividade, muitas vezes de uma freqüência assustadora, passando a ocupar territórios essenciais na idade ainda em transição e que se apresentavam em seus abalos e turbulências muitas vezes incontornáveis. Dos seus adoecimentos, sentidos e sofridos. Havia em você meu filho uma impulsividade que é própria do adolescente. Mas os conflitos estavam, presentes, e produziu seus efeitos desastrosos e devastadores, que irrompem de uma maneira traumática, irrisória, drástica, assustadora e, até mesmo, insana. Foi um movimento por demais agressivo, inconsciente, mas que apresentou força suficiente capaz de promover danos irreparáveis. A sua violência era desencontrada, contra você mesmo. Perdi as contas de quantas vezes eu fiquei a noite pensando nessa sua raiva interna, nessa violência que você trazia dentro de você. Filho você se comia em vida, roia suas unhas, comia suas sobrancelhas. Era uma violência surda, que acredito que você mesmo tinha medo do poderia acontecer.
Hoje eu acredito que você estava sofrendo os embaraços da dor herdada, da violência que você presenciou durante toda a sua infância, não só presenciou como também foi vitima. Por alguma razão, você não conseguiu reverter o rumo da história recebida, daí, sofreu os efeitos devastadores dos ideais contrariados de seus ancestrais. Por alguma fragilidade psíquica você não conseguiu se dar a chance de assumir e se apropriar de sua própria história retificando a má sorte que uma equação de vida lhe impôs como algo tão maldito. Não há culpados na história.
De algum modo tenho que me tornar responsável pela história que você recebeu. Foi o peso desta história recebida que te levou a não suportar viver? Uma história que se estrutura pelo viés dos efeitos de inconsciente – de uma boa ou má sorte – que ela mesma instaura.
A herança simbólica que cada um de nós recebe, até mesmo antes do nascimento, com a interrupção de uma vida, cessará de ser transmitida para filhos e netos, restando, nesse vazio, nada mais que um ponto de sacrifício habitado por interrogações silenciadas. Herdamos uma vida por onde florescem todos os pecados do mundo, vale dizer, do pai, da mãe, dos nossos antepassados. Votos de vida e votos de morte. Cada um de nós terá que aprender a lidar com a sua história de uma maneira particular, a partir de um estilo de vida. Mas temos oportunidades e meios para mudar os rumos de uma má sorte.
Eu desejava que você vivesse cada vez mais. Queria ter podido te dar uma boa infância, e que você pudesse ter tido a chance de participar das brincadeiras com outras crianças. que crescesse e se tornasse independente que estudasse e cursasse uma universidade, que encontrasse um caminho vitorioso na vida amorosa e profissional. Queria mais ainda, deseja, verdadeiramente, que você estivesse presente quando eu morresse que você enfrentasse e superasse as dificuldades.
Mas tenho que admitir o medo, a covardia, e a mascara da vitima coitadinha, não me deixaram tomar uma atitude que pudesse ter proporcionado a você e a seus irmãos, tudo isso que qualquer criança tem como direito nato. Eu os privei de uma vida normal, os privei quando não tive atitude para mudar o rumo de nossas vidas.
Eu não te perdi, eu perdi, perdi tudo. O buraco que ficou é um rombo. Você carregou algo de cada um de nós, que, por sua vez, algo de você está em mim, em sua irmã e no seu irmão, para sempre. Também nas vizinhanças, há ressonâncias dos estilhaços de perdas que promovem feridas por vezes não cicatrizáveis. A perda de um filho. Eis, aí, a dor maior que habita a alma humana.
O que se passa aqui? Não somos mais os mesmos, logicamente. A sua morte provocou uma desestruturação, uma quebra dos vínculos, uma ruptura dos laços que sustentava uma então cumplicidade necessária para se viver em família. Mas alguma coisa ainda vive aqui para além do que se poderia imaginar. O tempo não curou. Não há mais lugar para a alegria, para o diálogo. Ela está pesada, pesarosa. Estamos fechados em nós mesmos. Não podemos respirar vida. Eis o problema maior. Não há lugar para a palavra, ela não circula. Você está posto, alocado em proporções distintas em cada um, de nós, fazendo parte, impedindo que a falta se coloque, que possa circular, dando a ver lugar para a fala e para a palavra. Desejos amortecidos, ninguém se autoriza desejar.
Estou imersa num gozo culposo e lamentador. Caindo na ressente da dor da perda, não faço outra coisa senão ruminar dentro de mim o peso de um fracasso.
Questiono-me sobre o acontecido, sobre minha parte nisso tudo.
POSTADO POR UMA MULHER